Senhora Hermann e Hermann Hesse, Contos de Amor
Excelentíssima Senhora:
Convidou-me um dia a escrever-lhe. Pensou que seria muito agradável para um jovem com tendências literárias poder enviar cartas a uma bela e prezada dama. Tem razão, é muito agradável.
E além disso, também notou que escrevo muito melhor do que falo. Por conseguinte eis-me a escrever-lhe. É a minha única oportunidade de lhe dar um pequenino prazer, e é isso o que eu muito gostaria de fazer. Porque eu a amo, minha senhora. Permita-me ser mais pormenorizado! É necessário , porque de outro modo não me poderá compreender, e talvez se justifique porque esta será a única carta que lhe escrevo. E basta de introduções!
(…)
Um dia apaixonei-me e, sem esperar, tinha de novo todoas as ligações com a vida, mais fortes e mais multifacetadas do que nunca antes.
Desde então tenho vivido horas e dias maiores e mais deliciosos, mas nunca essas semanas e meses, tão quentes e tão plenos de um sentimento permanentemente torrencial. Não lhe quero contar a história do meu primeiro amor, não tem importância, e as circunstâncias exteriores bem podiam ter sido diferentes. Mas a vida, que então vivi, gostaria de a descrever um pouco, se bem que saiba que não vou conseguir. A busca apressada teve um fim. Encontrei-me de repente no meio do mundo vivo e estava ligado por inúmeros filamentos à terra e às pessoas. Os meus sentidos pareciam estar mudados, mais aguçados e mais vivos. Especialmente os olhos. Via tudo diferente do que via anteriormente. Via cores mais claras e mais variadas, como um artista, e sentia prazer na simples contemplação.
O jardim do meu pai estava no seu esplendor estival. Tinha arbustos em flor e árvores com uma espessa folhagem de Verão contra o céu profundo, a hera subia pelo grande muro de suporte e em frente descansava a montanha com rochedos avermelhados e florestas de abetos azuis-escuros. E eu ficava a ver e sentia-me tocado porque tudo era tão lindo e vivo, colorido e brilhante. Muitas flores baloiçavam nas hastes de uma maneira tão delicada e tinham um aspecto tão comovedoramente fino e íntimo nos seus calicezinhos coloridos que eu as amava e as apreciava como as canções de um poeta. Também muitos sons, a que antes nunca tinha ligado, chamavam-me agora a atenção e diziam-me coisas e ocupavam-me: o som do vento nos pinheiros e na relva, o barulho dos grilos nos campos, o trovejar das tempestades ao longe, o murmurar do rio na represa e as muitas vozes dos pássaros. À tardinha via e ouvia os enxames das moscas na luz dourada do entardecer e escutava as rãs no lago. Mil pequenas coisas passaram a ter importância para mim e eu passei a gostar delas e tocavam-me como se fossem vivências. Por exemplo, quando de manhã regava alguns canteiros para passar o tempo e a terra e as raízes bebiam a água tão ávidas e agradecidas. Ou via uma pequena borboleta azul cambalear como ébria na luz do meio-dia. Ou observava o abrir de um botão de rosa. Ou deixava à tardinha pender a mão do barco para dentro da água e sentia nos dedos o puxar suave e tépido do rio.
Enquanto o sofrimento de um desconsolado primeiro amor me atormentava e e enquanto me moviam uma necessidade incompreendida, uma saudade diária e uma esperança e desilusão, sentia-me a cada instante feliz no meu mais profundo íntimo, apesar da melancolia e do medo do amor. Tudo o que estava à minha volta era-me agradável e tinha sempre qualquer coisa para me dizer, não havia nada morto nem vazio no mundo. Nunca mais perdi isto inteiramente, mas também nunca mais foi assim forte e permanente. E viver isto de novo, assenhorear-me disto e guardar tudo, é essa agora a ideia que tenho da felicidade.
Quer saber mais coisas? Desde essa altura até hoje nunca mais me voltei a apaixonar verdadeiramente. De tudo o que conheci nada me pareceu mais nobre e fogoso e arrebatador do que amar uma mulher. Nem sempre tive relações com senhoras ou com raparigas, também nem sempre amei conscientemente uma delas, mas os meus pensamentos tiveram sempre ligados ao amor e a minha veneração pelo belo foi sempre uma constante adoração de mulher.
Não lhe vou contar histórias de amor. Tive uma vez uma apaixonada, durante alguns meses, e colhi realmente um beijo e um olhar e uma noite de amor quase sem querer, assim de passagem, mas se amei de facto, foi sempre uma infelicidade. E se me recordo bem, o sofrimento de um amor sem esperança, o medo e a timidez e as noites em branco eram muito mais belos do que todos os pequenos casos de felicidade e de sucesso.
Sabe que estou muito apaixonado por si, minha senhora? Conheço-a já há quase um ano, se bem que só tenha estado em sua casa quatro vezes. Quando a vi pela primeira vez, tinha, sobre a blusa de um cinza claro, um broche com um lírio de Florença. Vi-a uma vez na estação a entrar para o rápido de Paris. Tinha um bilhete para Estrasburgo. Nessa altura ainda não me conhecia.
Fui depois com o meu amigo a sua casa, já eu estava apaixonado por si. Só reparou nisso na terceira vez que a visitei com a música de Schubert. Pelo menos foi o que me pareceu. A princípio troçou da minha seriedade, depois das minhas expressões líricas, e à despedida foi simpática e um pouco maternal. E a última vez, depois de me ter facultado a sua morada de Verão, permitiu-me que lhe escrevesse. E foi o que fiz hoje, após longa meditação.
Como é que devo acabar a carta? Digo-lhe que esta minha primeira carta será também a minha última. Aceite as minhas confissões que talvez tenham o seu quê de ridículo, como a única coisa que lhe posso oferecer e com que eu lhe posso mostrar que muito a prezo e a amo. Enquanto penso em si e me confesso a mim próprio que desempenhei muito mal perante si o papel do apaixonado, sinto no entanto um pouco do milagre de que lhe falei. Já é noite, os grilos cantam ainda diante da minha janela no relvado húmido e há muita coisa que está como naquele Verão fantástico. Talvez, penso, possa vir a ter tudo de novo e viver outra vez as mesmas coisas se me mantiver fiel ao sentimento que me envolveu ao escrever-lhe esta carta. Gostaria de renunciar ao que a maior parte dos jovens se segue ao ficar apaixonado e que eu próprio conheci mais do que bem – o jogo semiverdadeiro, semiartificial dos olhares e dos gestos, o tocar dos pés por baixo da mesa e o abuso de um beijo na mão.
Não consigo exprimir plenamente aquilo que quero dizer. Talvez me compreenda apesar disso. Se é como eu a imagino, poderá rir-se do fundo do coração com esta minha escrita confusa, sem me menosprezar por isso. Possivelmente irei também eu um dia rir-me sobre isto, mas hoje não posso e também não quero.
Com o mais profundo respeito,
B.
(1906)
Hermann Hesse, Contos de Amor
Crédito : Leitoras SOS
Crédito : Leitoras SOS